Às voltas com a produção de um novo romance e uma peça de teatro, Marcelo Mirisola suspendeu por uns tempos a publicação de suas crônicas no Congresso em Foco. Este sábado, porém, ele retorna momentaneamente, com um texto que escreveu originalmente para o jornal francês Le Monde Diplomatique. Trata-se de uma resenha do livro de Jason Tércio, “Segredo de Estado – o Desaparecimento de Rubens Paiva”.
O texto foi publicado no Le Monde Diplomatique com a supressão de um trecho que Mirisola julgava muito importante. Por isso, ele agora publica abaixo a resenha na íntegra, da forma como a escreveu. É esse o texto que segue abaixo:
Muito difícil escrever sobre o desaparecimento de Rubens Paiva. Como se eu fosse mais um a entrar sem pedir licença e grosseiramente revolver a ferida aberta há quarenta anos, uma chaga que é a história de Eunice Paiva e dos seus filhos, e também história do Brasil.
Há quarenta anos que a privacidade da família Paiva não existe.
Duas cartas vindas do Chile foram interceptadas pelo CISA, órgão de inteligência da aeronáutica. A primeira agradecia “Raul” por um favor, e pedia qualquer miudeza em troca; e a segunda - endereçada a “José” - tratava da fuga de presos políticos e de uma proposta de se criar em Santiago uma seção internacional do MR-8. Rubens Paiva, cujo codinome era “Raul”, contava apenas 41 anos quando o estado brasileiro o sequestrou. Diante da tosquice dos militares da época, fica difícil dizer que houve um engano, mais correto seria dizer que Paiva levou azar. Muito azar. O telefone de “Raul” constava numa das cartas. O ex-deputado fazia parte de uma rede de empresários, professores, profissionais liberais, cuja maioria – segundo Marcelo, filho de Rubens - não defendia a luta armada. Isso, porém, não queria dizer se omitir diante da ditadura que vigorava no Brasil. Rubens Paiva mandava relatos às agências internacionais sobre torturas e violação dos direitos humanos, escondia perseguidos, arrumava passaporte falso, resistia como podia. Deu muito azar. Se em vez do telefone dele constasse o número de qualquer outra pessoa, digamos Fernando Henrique Cardoso, que na época era professor da USP, amigo de Rubens e “comunista” como ele, se na carta interceptada, constasse o telefone de FHC, hoje Rubens teria 81 anos e FHC provavelmente não seria o último tucano a voar no Brasil. Aqui e agora, fica difícil imaginar um FHC armado até os dentes e disposto a morrer pela causa vermelha. Mas em 1971, no auge do período repressivo, os milicos imaginavam comunistas infiltrados em qualquer lugar, até mesmo no Leblon e de frente para o mar. Av. Delfim Moreira 80, esquina com a rua Almirante Guimarães. Eis o endereço do terrorista sanguinário chamado Rubens Paiva, pai de 5 crianças, empresário bem-sucedido da construção civil. No dia do sequestro seu plano subversivo – vejam só - era ir ao Flag (boate perto de sua casa) com a esposa e um casal de amigos.
Era dia de São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio de Janeiro. Aliás, é engenhoso o paralelo que Jason Tércio, autor desse livro extraordinário, traça entre o santo martirizado e o sumiço de Rubens Paiva. Vamos à missa, portanto. Igreja dos Capuchinhos, Tijuca. Em determinado momento, o frade provoca o coronel Tigre (personagem muito bem-construído), e diz: “A coragem foi uma das principais características deste santo. Ele ajudava os cristãos perseguidos e assumia a sua fé sem temer as consequências. Se fosse um cristão fraco, de fé leviana, teria fugido para bem longe, ou abjurado, e se acomodado. Ele não. Continuou a evangelizar e também a criticar Diocleciano pelas injustiças cometidas contra os cristãos”.
Basta trocar Sebastião por Rubens, cristão por democrata e Diocleciano por Médici, que o prato está servido. Se fosse o caso, o cel. Tigre torturaria o santo até ele admitir que seus companheiros de armas conspiravam contra o capitalismo e que ele, de santo, não tinha nada: era um comunista safado desde a infância em 288 DC e, além disso, um traidor da “revolução” e - é claro - devia saber do paradeiro de Carlos Lamarca.
“Segredo de Estado – o desaparecimento de Rubens Paiva” é um livro de ficção, e é também uma reportagem. Segundo o autor, 80% verdade, 20% inventado. O leitor sente-se eletrocutado, pendurado num pau-de-arara, dói. O brigadeiro Karlos Brenner, por exemplo, não sai da minha memória: “personagem” que carrega divisas e cadáveres sobre ombros largos. O escárnio prevalece sobre a ficção. Depois de 2 dias barbaramente torturado na masmorra do DOI-Codi, Rubens Paiva morre.
O que fazer com o corpo do comunista? Talvez seja essa a parte mais asquerosa da “ficção”, elaborada curiosamente pelo Estado Brasileiro. Apesar da inverossimilhança, O Globo, JB, Tribuna da Imprensa, O Dia chancelam a versão dos militares - segundo a qual o terror havia libertado o “subversivo” Rubens Paiva quando ele era transferido pelas “autoridades” para uma delegacia no Alto da Boa Vista. A meu ver, os que divulgaram essa mentira são tão criminosos quanto os Brenners, Tigres, Coiotes e outros personagens fictícios e não tão fictícios que se misturam a depoimentos, fatos e fotos ao longo do livro. “Segredo de Estado” esmiúça, derruba a farsa e provoca a consciência do leitor – eu particularmente me senti envergonhado, por mim e por aqueles que ainda hoje consomem as informações vindas dos mesmos veículos de comunicação que ajudaram a matar Rubens Paiva, corrompidos ontem, hoje e desde sempre.
Verdade que os brucutus evoluíram, embora continuem truculentos e às vezes tenham algumas recaídas, como no recente caso de Maria Rita Kehl – demitida por “delito de opinião”. Todavia, hoje, os Tigres e Chacais mudaram os métodos. Aprenderam a não rosnar. O que era manual de instrução de tortura virou portfólio. Só para refrescar a memória e ao mesmo tempo traçar um paralelo. O apresentador do Programa Metrópolis, Cadão Volpato, é o mesmo que fez o release do projeto Amores Expressos para a Cia da Letras e vendeu a idéia de que Rodrigo Teixeira era o novo Quixote da cultura brasileira. A Folha de São Paulo não só comprou a farsa como a festejou na capa da Ilustrada. Lembram disso? Renúncia fiscal para mauricinho escrever história de amor em Paris, Roma, Nova York. Agora, vamos fazer um exercício de imaginação. Voltemos ao começo dos 70’s. Um ano depois de o Brasil ter conquistado a Copa do Mundo no México. Se Teixeira e Volpato contassem trinta e poucos anos em 1971, qual seria o “projeto expresso” deles?
Uma aproximação descabida? Então, hoje, onde estariam os Tigres, Coiotes e Hienas? Tenho um palpite. Procurem no Brasil profundo, eles adoram “mapear a periferia”, são líricos e desencanados, curtem samba de raiz e desfilam havaianas na Flip, cobram juros astronômicos e nem parecem banco, são charmosos, cinematográficos e ilustríssimos, mas não se enganem, a finalidade dos Abutres continua a mesma: expurgar, censurar e eliminar qualquer um que se atreva a passar pelo caminho fofo e colorido deles.
Depois de 40 anos, a boa notícia é que alguns jornais e revistas faliram e outros estão com os dias contados, a má notícia é que a Internet pulveriza tudo, inclusive as boas notícias. Vejam só o que, à época, o “imortal” Murilo Melo Filho, uma espécie de Cadão Volpato dos milicos, escreveu na revista Manchete: “Há quatro dias aquela delegacia policial estava sob severa vigilância dos subversivos. Mediante infiltrações e informes seguros, sabiam eles que Rubens Paiva – um homem importante dos quadros da ALN. – seria removido para outra delegacia que oferecesse maior segurança. Ele havia mandado pedir aos companheiros que o resgatassem a qualquer preço (...). O cerco, o bloqueio da estrada naquele ponto estratégico do Alto da Boa Vista, tudo enfim, deu aos policiais a exata noção de um plano ardiloso, tático, inteligente e de perfeita execução”.
Àqueles que consentiram/ consentem, se omitiram/omitem, calaram/calam, fingiram/ fingem que estava/está tudo bem, desejo o fogo do inferno e um chá com Murilo Melo Filho na ABL. Dias depois de Rubens Paiva ter morrido sob tortura, Eunice e a filha também seriam sequestradas e torturadas. O corpo do ex-deputado não foi encontrado até hoje. Depois de oito anos, em 79, a lei da Anistia iria apagar da memória dos brasileiros os horrores daquela época, como se a memória também fosse um inimigo a ser exterminado. Aqui, diferentemente do Chile e da Argentina, os assassinos (de ambos os lados) continuam livres e impunes. Aqui no Brasil, o horror e o escárnio continuam sendo sinônimos de ordem e progresso.
Com Congresso em Foco
0 comentários:
Postar um comentário